1.3.3. Os Princípios Teológicos Gnósticos
Os princípios gnósticos (do gnosticismo ocidental, da vertente
ocidental, bem entendido) têm seu fundamento filosófico em Platão. Para Platão,
as idéias, independentemente das coisas e do intelecto humano, são as causas
temporais para os objetos sensíveis. As idéias ou formas são entidades
incorpóreas e invisíveis, reais, eternas e sempre idênticas a si mesmas,
escapando à ação corrosiva do tempo, que torna os objetos físicos perecíveis.
Ou seja, nosso mundo tridimensional tem uma origem, um molde, e esse molde é a
realidade verdadeira, e não o mundo físico.
Para Platão, porém, os primeiros Princípios, o mundo das idéias, têm a
função de objeto do conhecimento. Valem para explicar a realidade física tanto
da esfera superior como do mundo. Mais tarde, os sucessores de Platão,
baseando-se no Uno, como princípio transcendente, alteraram estas bases do
platonismo antigo. Os princípios que eram, para Platão, objetos ou meios de
conhecimento passarem a ser considerados uma entidade real, dignos de
veneração, que poderiam produzir outros seres por meio de geração ou de
emanação. O Uno passou a ser objeto real que poderia produzir outros seres
através da emanação ou geração.
Para Piñero e Montserrat, estes dois momentos, a passagem de objeto a
sujeito e a possibilidade da geração/emanação, ocorrem em todas as vertentes do
platonismo e leva a profundas divergências. Alguns grupos gnósticos prescindem
do Uno e consideram dois princípios: o Intelecto e a Alma divinos, o que
significa uma concepção diádica. Outros grupos mantêm a existência do Uno,
porém afirmam que o Uno gera o Intelecto e a Alma como entidades independentes.
Os Princípios primeiros formariam, sob este ponto de vista, uma tríade, Uno,
Intelecto e Alma (ou, segundo a ritualística gnóstica, Espírito, Mente e
Razão). E ambos os sistemas consideram uma divisão da Alma em duas subentidades
Os que consideram os três Princípios (Uno, Intelecto, Alma do Mundo)
insistem que o Primeiro, o Uno, é o Sumo Transcendente, além do ser e do
inteligível. Defendem um processo de descida dos Princípios superiores aos
inferiores através da emanação ou geração. O segundo Princípio é o Intelecto e
contém em si todos os inteligíveis. O terceiro é a Alma/Espírito, que pode ser
concebido como dois subprincípios, uma Alma Inteligível e uma Alma do Mundo.
Este sistema triádico aproxima os gnósticos cristãos à Trindade do Novo
Testamento. O Deus Supremo, primeiro Princípio, corresponde ao Deus Pai. O
segundo Princípio, o Intelecto, corresponde ao Filho, é o Logos, que se faz
homem em Jesus e em todos aqueles que encarnam o Cristo Cósmico. Desse Filho
procede a centelha divina, que se encontra nos homens espirituais. O terceiro
Princípio corresponde ao Espírito Santo. Em seu desdobramento inferior é o
Princípio divino no tempo, a Alma do Mundo, a Natureza e o Criado.
Os gnósticos afirmavam que os judeus conheceram o terceiro Princípio em
seu produto inferior, que é o Demiurgo e apenas através da revelação da Bíblia
hebréia. Afirmavam também que os cristãos normais não vão além do segundo
Princípio, somente os gnósticos, os espirituais, chegariam ao primeiro
Princípio.
Para os seguidores do esquema diádico, a metafísica dos princípios é: o
"Deus Supremo" é um Intelecto que é bom, o equivalente ao segundo
Princípio dos sistemas triádicos acrescido do Bem. O "Segundo Deus"
ou princípio do Cosmos equivale ao terceiro Princípio dos sistemas triádicos ou
Alma do Mundo. Este "Segundo Deus" se desdobra em dois subprincípios
um inteligível e outro sensível.
À ramificação triádica da tradição platônica pertencem os
neopitagóricos, os valentinianos, os basilidianos e Plotino. Ao ramo diádico
pertencem Filón, Numenio, Albino e Poimandres e, entre os gnósticos: os
sethianos e Justino Gnóstico. Os teólogos da ortodoxia cristã antes do Concílio
de Nicéia são teologicamente trinitários, porém filosoficamente diádicos.
Pode-se reconhecer, também, nas diversas escolas ou correntes influências de
outras tradições filosóficas, em particular do estoicismo.
- Para os sethianos,
os Princípios (Intelecto/Alma do Mundo) não são concebidos como
substâncias. Há uma multiplicidade de graus ou estratos de emanação
descendente da divindade: Primeiro estrato - Formado pelo Uno.
- Segundo estrato - Os
Eons Superiores Femininos - O sujeito deste estrato recebe o nome de
Barbeló. Barbeló se "ergue" diante do Espírito Transcendente e é
definido como sua Imagem e seu Pensamento. Ela recebe os nomes de
Inteligência, Providência, Incorruptível, Vida Eterna e Verdade. Barbeló vai
desempenhar a função de Princípio dos estratos inferiores e Princípio do
Universo.
- Terceiro estrato -
Os Eons Superiores Masculinos - O sujeito deste estrato recebe o nome de
Unigênito e Filho. Os Eons do segundo e terceiro estratos formam o Pleroma
Superior que virá a ter o momento de queda ou "deficiência".
- Quarto estrato - Os
Eons do Pleroma Inferior - estes Eons foram engendrados pelo Deus que foi
engendrado, o Cristo.
- Quinto. estrato - o
Eon Sabedoria - A função da Sabedoria (Sophia) é a criação do universo, é a
"mãe do universo". Sabedoria é "a que olhou para
baixo". Esta descida da Sabedoria é concebida como
"inocente".
Há dois motivos para a queda da Sabedoria: primeiro, produz uma obra sem
o consentimento do Pai e, segundo, o faz separada de seu consorte. O resultado
desta ação é um trabalho imperfeito, o Arconte demiúrgico ou uma sombra que,
através da matéria, produz o arconte Demiúrgico. Em função desta obra, a
Sabedoria é denominada material (gr. Hylikós).
A Sabedoria busca a luz que a havia porém não pode alcançá-la por causa
do impedimento do Limite. Por não poder ultrapassá-lo, por continuar misturada
à sua paixão e, ao permanecer abandonada fora do Pleroma, a Sabedoria cai em
todo tipo de paixões, multiformes e variadas. Destas paixões (também divinas),
nasce a primeira matéria, primordial e inteligível, não sensível, tem origem o
Demiurgo. As demais coisas nasceram de seu temor e de sua tristeza. Das
lágrimas da Sabedoria vieram as substâncias úmidas; de seu riso, a sabedoria
luminosa; de sua tristeza e de seu estupor, os elementos corporais do mundo.
Esta matéria primordial não é o mundo corpóreo, porém o substrato a
partir do qual se plasmará o mundo corpóreo. O mundo visível será criado,
posteriormente, pela Sabedoria de modo indireto, graças ao Demiurgo. O Demiurgo
- A criação do mundo físico é atribuída ao Arconte Demiurgo.
Esta figura intermediária entre o universo material e o Transcendente
serve para afastá-lo do universo de modo que o Ser Supremo fique livre de ter
criado diretamente o material, porém, o universo, em última instância, foi
originado do último termo da divindade, já que o Demiurgo pertence ao âmbito do
divino. Com a existência da matéria permaneceu confirmados também a
Deficiência, a oposição ao Transcendente e, em último caso, o Mal.
Os gnósticos se dividem quanto à substância da qual é formado o
Demiurgo. Para a maioria, possui somente a substância psíquica, para outros,
tem dentro de si uma centelha divina que procede da substância de sua Mãe,
ainda que logo a perca ao criar o homem.
O Demiurgo engendra ou produz Auxiliares para a obra da criação. Estes
auxiliares, os arcontes inferiores, correspondem a dois modelos: o planetário e
o zodiacal. O modelo planetário puro consta de sete arcontes, um para cada
círculo planetário. O modelo zodiacal puro consta de doze membros. Há também um
modelo misto, zodiacal e planetário. São os 7 e os 12 Salvadores.
A criação demiúrgica - A função do Demiurgo é operar a matéria
inteligível, preexistente a ele, por meio de uma forma recebida do alto. Isto
significa plasmar o mundo, pelo desejo indireto do Transcendente, a partir da
substância primitiva e incorpórea gerada pela sua Mãe Sabedoria. Porém, executa
esta tarefa sem saber exatamente o que fazer, pois o faz por mímesis e por
ordem do Pleroma, sem disso ter consciência.
Com a criação já concluída pelo Demiurgo, aparecem três substâncias que
desempenham papel muito importante na soteriologia:
a) A substância espiritual, "pneumática" ou
divina (que se acha dentro do Pleroma) e, fora dele, na Sabedoria que também é
um ente divino e, posteriormente, no espírito ou parte superior do ser humano.
b) A substância "psíquica"; engendrada pela Sabedoria
inferior; é própria do Demiurgo e de alguns níveis intermediários entre a
matéria e o espírito, por exemplo, no princípio vital, ou alma do homem.
Em terceiro lugar, a substância puramente material, ou hílica,
representada pela matéria toda do cosmo.
O mito cosmológico gnóstico significa que o Uno não intervém de modo
direto na criação do mundo. Está demasiado distante para atuar
"pessoalmente", pois a matéria é uma entidade degradada, que ocupa um
posto muito baixo na escala do ser. O princípio imediato da criação do cosmos é
o Intelecto divino no qual se acham as idéias, modelos ou princípios que
serviram para criar o cosmo.
Desta
cosmologia se deduzem algumas conseqüências importantes para a antropologia, a
ética e a soteriologia:
Ao final das contas, tudo procede de uma única
fonte, o sumo Transcendente por emanação-degradação;
existe uma separação entre o mundo
superior/espiritual (o Pleroma) e o mundo inferior/ material (o kénoma, ou
vazio); a matéria é degradação, a última escala
do ser, ainda que proceda de Deus, é fruto de uma deficiência, de uma falta do
ser divino;
O mal está incluso na deficiência, na paixão da Sabedoria. O universo, criado
pelo demiurgo, é mau. O corpo do homem é a prisão do espírito;
Antropologia - a criação do ser humano é efetuada também pelo Demiurgo,
assistido pelos anjos. Na maioria dos sistemas gnósticos, a criação do homem
acontece porque o Transcendente, ou um dos Eons superiores, em determinado
momento, envia aos anjos do Demiurgo, ou a este diretamente, a forma ou imagem
do Homem Celeste ou primordial. Um dos Eons do Pleroma, o Salvador, ou o
Pleroma completo, se reflete nas águas inferiores e desencadeia o processo de
criação.
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